HÓSPEDE À REVELIA


Como se guarda uma relíquia de família: é dessa forma que forçosamente te hospedo, profana no sacrário dos sacrários. Não te dei nome nem finalidade, não te vi na Globo nem ali na esquina, nem famosa nem desconhecida tampouco alguém dirá que és. Também, para ser sincero, não sei nem de lourice nem morenidade que doure ou alveje tua pele, nem de cabelos lisos ou cacheados, nem de palavra tua que tenha ficado, ressoando, em meus ouvidos. Te conservo em silhueta indefinida, até que venha a hecatombe que dizime a raça humana, e tudo indica que não tarda esse momento. Marmórea e absoluta nunca te apresentaste. Não, não é materialmente organizada que fazes parte de meus móveis e utensílios, que surges pelos quadros nas paredes e impregnas com teu cheiro até os vapores das panelas. Existes enquanto ser que não há de ser, e fora da abstração jamais terás sobrevida, até porque perderias fatalmente teu encanto. És o ingresso para a ópera de encenação incerta e final arrebatador, sabes disso e tiras partido dessa opacidade para manter-me em labirinto, venerando-te sem nada que justifique a adoração. Estavas na Pedra de Roseta e estarás entre os eleitos no juízo final, permaneceste fóssil na noite paleozóica e talvez ganhem teu útero as ogivas nucleares. De tua boca saem o sânscrito e a gíria dos internautas, numa babel que nada diz e a nada leva. Estudaste em colégio interno e queimaste sutiãs, sei que fizeste amor com quem quer que te olhasse demoradamente. E é dona das atenções no baile que te vejo agora, manipuladora e egocêntrica, consciente dos teus dotes e tirana, atemporal Cleópatra de caprichos tantos. Trato-te no feminino mas escapaste para aquém ou além do gênero, pois podes muito bem ser duna ou vulcão, montanha ou penhasco,primavera ou verão, como melhor te aprouver. Há os que te chamam musa, há os que te chamam deusa, e assim vais roubando o sono com tua indefinição. Pois seja como quiseres. Só te peço que me alivies um pouco o peso de te levar.
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