DO ALÉM

Nem imagina você, raro e por isso mesmo estimadíssimo leitor, o que é acordar tiritando em pleno inverno, correr para o chuveiro e ouvir o estouro da resistência, dizendo “Sorry, Mané”. Era o começo de um calvário atordoante, que iria se estender por todo aquele interminável dia.
Já ouviu falar em malabares na cara? Pois é, depois do banho siberiano, foi o que ganhei ao parar no primeiro semáforo a caminho do trabalho. O malabarista devia ser iniciante. Por um erro de cálculo o pino entrou pela janela do meu carro e deixou um razoável hematoma entre meu nariz e o olho esquerdo.
Próximo semáforo. Por míseros 50 centavos, o rapaz da cadeira de rodas me regalou com 3 pacotes de bala de goma. Na primeira mastigada caiu uma restauração. Discretamente, cuspi na rua o ex-pedaço de dente. Um guarda municipal viu e me multou por sujar via pública. Tentei explicar. Ele riu do meu incisivo pela metade, enquanto me entregava a autuação.
Liguei pra empresa avisando que ia chegar mais tarde. Parei no dentista pra arrumar o estrago. Na hora de pagar, peguei o talão de cheques mas não havia nenhuma folha. Precisava ir ao caixa eletrônico mais próximo. Mas tive que ir atrás do carro, que sumiu. Corri pra delegacia registrar a queixa. Para lavrar o B.O. precisava apresentar o RG. Cadê? Devia ter caído na hora em que tirei do bolso o talão, no dentista.
Voltei ao consultório, a pé. No caminho, fui assaltado. Queria tudo o bandido. Mostrei o nada do talão sem cheques. Em represália, uma coronhada. Também, convenhamos: isso é bem que se entregue a um ladrão sério, consciencioso, que luta pra ganhar a vida? Perdi os sentidos com o golpe, a última coisa que me faltava perder. Mas logo recobrei. Tinha que enfrentar o pior, que ainda estava por vir.
“O senhor mora onde?”, alguém perguntou. Estava tão atordoado que tive de pensar pra responder. Uma assistente social me levou, num táxi com a suspensão vencida e o escapamento aberto. Tão aberto que chamou a atenção da multidão reunida em frente à minha casa.
Sim, um helicóptero tinha caído exatamente sobre ela. Intacto, só o bidê do banheiro da empregada, que estava sendo saqueado no momento em que cheguei. Gritei: “Macacos me mordam!” e um macaco, saltando das ruínas do que era o armário de mantimentos, me mordeu. Com um naco de braço a menos, fui escalando os escombros à cata do único retrato de mamãe, ao menos isso tinha de salvar.
De frente para uma câmera e de costas para mim, uma repórter da Globo, vestindo tailleur cinza, falava alguma coisa sobre o trabalho dos bombeiros. A tragédia estava sendo televisionada. O celular tocou. Era meu chefe. “O senhor não disse que estava no dentista? O que está fuçando aí, na casa que caiu? É, a mentira tem perna curta, Seu Sérgio. Além de faltar ao trabalho, ainda tira proveito da desgraça alheia. Está demitido.”
Morri enquanto procurava o remédio para o coração. E para que fique claro que não houve causa mortis, e sim uma série delas, ditei este texto psicografado pelo autor deste blog.
P.S.: Se alguém achar o retrato de mamãe, favor ter a bondade de afixá-lo junto ao meu, em minha sepultura no cemitério da Consolação. Deus lhe pague, aí embaixo ou aqui em cima.
Já ouviu falar em malabares na cara? Pois é, depois do banho siberiano, foi o que ganhei ao parar no primeiro semáforo a caminho do trabalho. O malabarista devia ser iniciante. Por um erro de cálculo o pino entrou pela janela do meu carro e deixou um razoável hematoma entre meu nariz e o olho esquerdo.
Próximo semáforo. Por míseros 50 centavos, o rapaz da cadeira de rodas me regalou com 3 pacotes de bala de goma. Na primeira mastigada caiu uma restauração. Discretamente, cuspi na rua o ex-pedaço de dente. Um guarda municipal viu e me multou por sujar via pública. Tentei explicar. Ele riu do meu incisivo pela metade, enquanto me entregava a autuação.
Liguei pra empresa avisando que ia chegar mais tarde. Parei no dentista pra arrumar o estrago. Na hora de pagar, peguei o talão de cheques mas não havia nenhuma folha. Precisava ir ao caixa eletrônico mais próximo. Mas tive que ir atrás do carro, que sumiu. Corri pra delegacia registrar a queixa. Para lavrar o B.O. precisava apresentar o RG. Cadê? Devia ter caído na hora em que tirei do bolso o talão, no dentista.
Voltei ao consultório, a pé. No caminho, fui assaltado. Queria tudo o bandido. Mostrei o nada do talão sem cheques. Em represália, uma coronhada. Também, convenhamos: isso é bem que se entregue a um ladrão sério, consciencioso, que luta pra ganhar a vida? Perdi os sentidos com o golpe, a última coisa que me faltava perder. Mas logo recobrei. Tinha que enfrentar o pior, que ainda estava por vir.
“O senhor mora onde?”, alguém perguntou. Estava tão atordoado que tive de pensar pra responder. Uma assistente social me levou, num táxi com a suspensão vencida e o escapamento aberto. Tão aberto que chamou a atenção da multidão reunida em frente à minha casa.
Sim, um helicóptero tinha caído exatamente sobre ela. Intacto, só o bidê do banheiro da empregada, que estava sendo saqueado no momento em que cheguei. Gritei: “Macacos me mordam!” e um macaco, saltando das ruínas do que era o armário de mantimentos, me mordeu. Com um naco de braço a menos, fui escalando os escombros à cata do único retrato de mamãe, ao menos isso tinha de salvar.
De frente para uma câmera e de costas para mim, uma repórter da Globo, vestindo tailleur cinza, falava alguma coisa sobre o trabalho dos bombeiros. A tragédia estava sendo televisionada. O celular tocou. Era meu chefe. “O senhor não disse que estava no dentista? O que está fuçando aí, na casa que caiu? É, a mentira tem perna curta, Seu Sérgio. Além de faltar ao trabalho, ainda tira proveito da desgraça alheia. Está demitido.”
Morri enquanto procurava o remédio para o coração. E para que fique claro que não houve causa mortis, e sim uma série delas, ditei este texto psicografado pelo autor deste blog.
P.S.: Se alguém achar o retrato de mamãe, favor ter a bondade de afixá-lo junto ao meu, em minha sepultura no cemitério da Consolação. Deus lhe pague, aí embaixo ou aqui em cima.