CIRCO DOIS IRMÃOS


É logo pelo início da manhã, quando o sol se espreguiça sobre o baú de retratos, que dá pra ver o que há de pó e o que há de tempo acumulados sobre ele.

Abro sem grande vontade, com a expectativa de quem sabe há muito o que vai encontrar. Range a dobradiça e salta a foto preto e branco 6x6, como um palhaço de mola numa caixa de surpresas.

Daquela foto eu não lembrava mesmo. Soco na cara, chute na idéia, salto mortal no trapézio de outras, muitas, ternas eras. Eu e meu irmão em frente a um circo, sei lá quando, sei lá onde nem por quê. Circo e nada para mim desde sempre é a mesma coisa. Podem todos eles pegar fogo que não hão de derreter a frieza que me causam.

Mas, senhoras e senhores, se o retrato veio à tona que comece o espetáculo. O inevitável número dos panos coloridos, amarrados uns aos outros, que o mágico vai tirando das entranhas. Quanto mais tira mais falta tirar. Tento gostar da lembrança, tratá-la sem rancor ou hostilidade. Pra facilitar as coisas coloco no último volume Being for the benefit of Mr. Kite, especiaria circense do Sargento Pimenta, o quarentão e ainda contundente monumento dos Fab Four.
Não sei se contaminado pela lisergia do disco, fecho os olhos e trago à vida aquele elenco de mambembes esquecidos. Desfilam um a um à minha frente, se apresentando em respeitosa reverência. E cada artista que passa é uma metáfora do mundo de verdade além da lona. Do faquir ao engolidor de fogo, por um momento a trupe inteira faz sentido e tem função, enquanto Gonzales, o mágico, continua a expelir trapos pela boca. Em cada pano se estampa um instantâneo vivido, comicamente exposto num palco de segunda por um ilusionista de terceira.

Então vejo que o homem-bala, a exemplo do Gonzales, também tem cartas na manga. Que a faca atirada na mulher tem dois gumes, nenhum deles afiados. Que a dança dos cachorros e a graça estudada dos elefantes põem mais medo nas crianças do que a fúria do leões.

A mão é mais rápida que o olho: na tentativa de desvendar o truque, me iludo mais uma vez. E girem os pratos, rufem os tambores, andem pelo arame sem rede de proteção. É assim que se acende a emoção da platéia. Mais um pouco e entram as coristas de coxas flácidas e seu can-can mal ensaiado, na seqüência os cavalos, o urso de sombrinha e os gêmeos malabaristas.

Respeitável público, lá vêm eles - Pirulito e Paçoquinha, com tortas nas fuças fazendo os pirralhos rolarem de rir. Atrás dos clowns, um macaco de óculos escuros e camiseta listada, como os macacos todos de todos os circos.

Na arquibancada de tábuas cabia a cidade toda. Humanos bestas, humanos macacos, humanos peruas, humanos cobras. Mas principalmente humanos ratos. Uma extensa fauna deles.

Caro leitor, peça de volta o dinheiro da entrada. A lona está furada e um vento dos diabos açoita o picadeiro. O redemoinho na serragem certamente há de cegá-lo, e o espetáculo, convenhamos, ficou muito, muito aquém do que o cartaz anunciava.

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