DO ÓCIO MAIS QUE IMPROVÁVEL


Nada anuncia no horizonte próximo alguns dias, poucos que sejam, de um lagartear gostoso e inconseqüente. Mas sonhar não custa, e o máximo que pode acontecer é me frustrar quando sair do devaneio.

Me permitirei levar uma mala dessas bem grandes, mas minimamente ocupada, onde acomodarei só o indispensável para a viagem. Quero ter espaço bastante pra forrá-la aos poucos, com o que for achando de melhor pelo caminho.

Qualquer lugar onde esteja será o ninho morno da preguiça. Despregarei os ossos da rede quando e somente quando me encontrar exausto de nada fazer. Me imagino acordando das sestas com o cachorro – que não tenho – lambendo minhas mãos, a implorar o afago adiado por pressas e compromissos. Me fartarei de admirar a aurora e o sol se pondo na fazenda centenária – que também não tenho – a meditar vendo mandalas nos ladrilhos da varanda.

Aí então talvez me dê vontade de escrever um texto que saia do cerne de mim direto para o papel, sem escalas no cérebro. Quase que mediúnico, desaguando como a cachoeira que há de me banhar, onde quer que eu escolha ir ficando, sem a menor possibilidade de ser encontrado. Um texto em que eu não tenha que me debruçar cortando adjetivos e procurando sinônimos, que flua sem meias palavras nem entrelinhas.

Mesmo estando minha filha já nos seus 18 anos, contarei a ela histórias que ficaram por contar quando ela tinha 8. Resgataremos um pouco o tempo mal gasto em correrias que a nada nos levaram, tentaremos compensar os dias vividos de forma autômata, a mando da sobrevivência predatória.

Deixarei de mastigar pensando no que farei depois de comer. Ruminarei lentamente, atento à mastigação como afazer em si. Surpreso, perceberei sabores insuspeitos em cada bocado. Como um recém-nascido, me entregarei aos cuidados dos que estão ao meu redor. Serei temporariamente irresponsável por meus atos. Um mero observador de flores e nuvens, que se encanta em tão somente observá-las.

Jornais, revistas, agendas serão solenemente ignorados. Tirarei o relógio do pulso. Mas abrirei uma exceção ao computador, pois prometi a mim mesmo umas buscas na internet atrás de amigos de infância. Darei virtualmente o ar da graça a alguns deles, mas não esperarei resposta, pois é mais do que improvável que possam estar como eu, em doce estado de ócio.

Darei ouvidos aos pássaros que cantam de manhã à janela, e dessa vez não deixarei o alarme do despertador abafar seu canto. É quase certo que eu resolva andar descalço o tempo todo, autorizar-me um estepe no pé e um risco de tétano. Bom seria ouvir minha mãe contando histórias. Não as inventadas que tenho em dívida com minha filha, mas as reais, as de família, que ela não cansa de repetir já que eu não canso de escutar.

Não resistirei aos divãs, almofadas, camas, sofás e espreguiçadeiras que apareçam à minha frente. A volta à rotina não passará de uma remota possibilidade, que nem cogitarei em levar realmente a sério. Mas eis que acordo, assustado. E, hesitante, caio em mim e vou à luta.

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