ENTRE LIVROS


É, foi um custo escalar a terceira prateleira da estante. Só encaramos a empreitada por estarem empilhados a enorme Bíblia que veio junto com a Barsa, O “Ulisses”, quatro tomos da obra completa do Machado e dois catataus dos quais não me recordo exatamente os títulos.

Na ida, ainda que grande o cansaço, tudo bem. Mas e a descida, de que jeito? Íamos nos arrebentar naqueles arranha-céus livrescos.

Continuamos subindo, Virgínia e eu. Havia um propósito naquela loucura. Quando vimos estávamos em meio a uma celebração de estranhos ritos, presidida por Sidarta e pelo Pequeno Príncipe.
Tia Nastácia chegou junto com Emma Bovary. Cinco minutos depois o Padre Amaro, Huck Finn e Ivanhoé surgiram no dorso de Moby Dick. De um amarelado volume de partituras saiu uma orquestra completa, executando “Clair de Lune” e a “Valsa das Flores”. Tudo isso ali, no alto do Morro dos Ventos Uivantes.

Nas lombadas mais lisas, dava para transitar de bruços entre a poesia e a prosa. Sem querer achamos, escondida atrás de um travessão, a palavra que até ontem nos fugia para fechar nosso verso. Predominavam páginas porosas e ásperas, o couchê envernizado era raro, se via em um ou outro livro de arte. Frases vazavam das brochuras na prateleira abaixo, saltavam e se decalcavam nas paredes. Algumas escorriam em nossos corpos, provocando o significado que tinham no papel.

Tanto os livros relidos quanto os nunca manuseados formavam uma massa indistinta para a traça e o mofo. Não estavam ordenados nem por assunto, nem por gênero, nem por ordem alfabética. Livros ali eram livros como arroz é arroz numa tulha. E sentíamos o amor que a coisa-livro, objeto meramente, despertava. Era preciso possuí-los, devorá-los, uns com calma e outros vorazmente.

Uma família de ácaros passou de repente entre um “Eu” e um “sou” do texto, no quarto parágrafo da página 112. Depois uma letra garrafal, da qual bebemos um gole. Virgínia estava exausta e as luzes, àquela altura quase todas apagadas, dificultavam a continuidade da missão. Deitamos os dois num Dom Quixote que alguém deixou aberto, edição espanhola com marcador de couro e sem dedicatória. Assim que Virgínia se acomodou no volume, fiz cair suavemente sobre ela uma das páginas. Antes que findasse a leitura de dois sonetos de Petrarca, ela já sonhava. Mas não comigo, quem dera. Tinha heróis de outros livros, mais intrépidos e apaixonados, ávidos por sacar a espada da bainha a um espirro seu.

O “Grande Sertão” abria-se como uma tela cinemascope à minha frente. No cipoal de advérbios e pronomes esbarrava em neologismos que passaram despercebidos em minha primeira leitura, no Liceu de Adamantina. Insone, segui viagem pelas veredas do Guimarães mais fecundo, que chegava conduzido pelo velho Manuelzão.

A serenidade de Virgínia repousando contrastava com o resto do mundo. Da porta para fora havia seres sobressaltados com seus carnês a pagar, mulheres escolhendo feijão pra seus maridos-robôs e filhos-cavalos. Que sina a dessas coitadas definhantes, acendendo velas e orando, orando, orando como se a vida fosse orar e escolher feijão? Nada disso venha a nós, longe de nós esse reino, deixemos as contas e vamos aos contos, romances, narrativas de princesas e heróis misteriosos. Possamos sorver até à última gota o leite das ninfas de Baudelaire, que é o que compensa e o que se faz com gosto, ainda que todos nos condenem à danação. Somos, eu e Virgínia, a primeira e a segunda parte de uma mesma história, que o autor largou sem achar um fim.

Postagens mais visitadas