PESARES DA CARNE



Como era possível alguém ser mais feliz que ele? Seu cercadinho era uma cápsula a lhe salvaguardar das patas e das patranhas dos homens. A proteção e o aconchego do pai e da mãe, solenes e permanentemente ao lado, leite quente na hora que quisesse, um verde vicejante a se estender por léguas, convidando a toda sorte de aventuras. Havia o sol bastante, a chuva necessária e a lua velando seu sono filhote em moitas de napiê. E tudo tão perfeitamente se assentava que mesmo do esterco a natureza lhe oferecia formosos cogumelos, quando garoava manso.

Assim correram luas e sóis prenhes de nada que acontecesse. Até a chegada da van branca, com seus homens brancos, de aventais brancos salpicados de vermelho.

Entreato. Amnésia de quadrúpede. Nada rebanhamente se sabe do que de fato sucedeu no interim de qualquer dia até a véspera de dia qualquer.

Quando se deu conta estava embaixo de uma ponte. No pôster mal-colado na pilastra de concreto, o candidato a vereador lhe sorria confiante, fazendo o “V” da vitória com seu bigode tingido de acaju. Compro ouro. Limpo seu nome. Dinheiro fácil e sem avalista. O habitat do bicho homem. O manequim da butique era quase um bovino em sua imobilidade, aquele humano de resina dura a lhe lembrar vagamente o tratador dos cochos.

Centenas de berrantes em uníssono, vindos de carroças a se moverem sem bois que lhes puxassem, pareciam impeli-lo a ir em frente e ganhar mundo, mas o mundo que eclodia à sua volta era hostil aos ruminantes.

- Pai, olha o boi pequenininho... tira uma foto, pai, tira!

Viu-se desfilando pelos vidros blindex de uma loja de departamentos. Enfim de volta à paz do campo, era seu rosto refletido no lago da estância, deduziu no raciocínio elementar dos bezerrinhos. Estava em casa, fim do transe. Mergulhou a cabeça para a merecida refrescada, num efusivo brinde ao reencontro pastoril.

Estilhaços pelo chão, polícia que chega, tempo que fecha, rês que se assusta e desembesta pelas ruas, o andar combalido e o crânio fraturado.

Passou por um semáforo e um garoto lhe enfiou goela abaixo o folheto de um empreendimento de 3 dormitórios, com piscina, fitness club e 180 meses para pagar. Como não reclamasse, aproveitou e tuchou logo um monte deles, para acabar mais rápido com o que tinha de distribuir.

Empacou subitamente defronte à lanchonete “Jóia da China”, mirando a estufa de salgadinhos. Enquanto uma lágrima ensaiava marejar seu olhar opaco, seco pelo amianto e irritado pelo diesel, ele mugiu:
- Mamãe!
Consta que um dos quibes da estufa, até então inerte entre um pão de queijo e dois risolis, vibrou como cauda de cachorro ao fazer festa para o dono. Vale entretanto frisar que ao ocorrido não se deu até hoje muito crédito, pois fora relatado por notório cachaceiro das imediações, que àquela altura da manhã já tinha umas três na cabeça.

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