PRELÚDIO
Queria não abrir o envelope pardo e áspero, que recenderia a desgosto assim que violado. A dama da noite adentraria pelo olfato aos salões do afeto, trazendo no colo todas as memórias possíveis e imagináveis.
Entregar-se conformado à morte quando ela viesse, sereno e consciente. Como seria no inverno serrano, os ossos carcomidos guardados pelo mármore mais frio dos mármores mais frios, sem ninguém a recorrer ou regaço a se abrigar? Sua tumba, imaginava-a simples e sem epitáfio. Queria ficar ali mesmo, na fazenda, talvez embaixo do grande ipê branco. Essas inquietações lhe trouxeram a imagem de Paula, raspando a parafina escorrida no chão sempre que se velava alguém na sala de visitas. Prosseguiu assim por uns minutos desenterrando mortos esquecidos da família, em seu descanso no cemitério velho de Villa Ângelus.
O açoite do vento faz balançar arreios ressecados, utensílios soltos rangem na cisterna.
- Posso servir o jantar, doutor Sandro?
Sem que ouvisse resposta, a bondosa Laura ia dispondo toda a baixela de prata sobre a mesa. O tilintar dos talheres sendo arrumados em volta do prato era discreto o suficiente para mantê-lo abstraído. Laura dava ordens às duas copeiras com a desenvoltura de quem há muito tem as rédeas da casa. Em seguida trouxe a sopa, fumegando mais que o costume para contrabalançar os 10 graus que faziam lá fora. Sandro abriu a terrina do prato principal e viu sua própria cabeça cozida, guarnecida por vagens, batatas e cenouras. Ao roçar do garfo a face desfiava-se, deixando à mostra a ossatura, como galinha na canja. Era o que merecia depois de tanta devassidão. Perdera a conta de quantas empregadinhas, filhas de colonos, se debruçaram à força sobre o móvel para satisfazer-lhe.
- Doutor Sandro...
- Por favor, Laura, retorne essa parafernália toda pra cozinha. Me basta um bife bem passado ou algo parecido.
- Com vinho tinto?
- Não, água.
Enquanto aguardava consultou o caderno de anotações, onde se liam cotações da arroba do boi e outros dados sobre commodities, além de uns poucos telefones e endereços.
Um ímpeto de chorar o limbo de dias estéreis, o inconformismo das perdas, do que conspirou para o silêncio cortante da casa. Sua vida de vidro, o vidro que fere e aleja e o vidro dos bulbos de lâmpada, memória cálida e incandescente.
O cafezal se alongando, as ruas simétricas como simétricas se enfileiravam as cadeiras de veludo ocre que via a partir da cabeceira. Quantos lugares vazios.
- Trago agora as compotas, Doutor Sandro?
- Não, Laura. Sirva-me um licor na sala de música.
Refletidos no cálice, seu pai em torno dos 40, empunhando armas e chicotes, o colete escuro e a camisa de linho impecavelmente branca. Sua mãe de avental e unhas encardidas de farinha, o batom de um carmim vivo e o cabelo sempre preso. Quase que visíveis se apresentaram também os sumos das laranjas chupadas no pé, sanfonas e quadrilhas, broncas e toques de afago.
Os filhos ainda crianças, depois adolescentes, casados, os netos.
- Charutos, Doutor Sandro?
Olhava o envelope pardo ali, intacto. Sua vida passando naquele copo que era uma bola de cristal às avessas. Ao invés de adivinhar o futuro, trazia o que havia de doce e de amargo no passado. Assim ficou até ver o chão abrir-se em ralo, levando tudo, inclusive ele, em seu abismo.
Entregar-se conformado à morte quando ela viesse, sereno e consciente. Como seria no inverno serrano, os ossos carcomidos guardados pelo mármore mais frio dos mármores mais frios, sem ninguém a recorrer ou regaço a se abrigar? Sua tumba, imaginava-a simples e sem epitáfio. Queria ficar ali mesmo, na fazenda, talvez embaixo do grande ipê branco. Essas inquietações lhe trouxeram a imagem de Paula, raspando a parafina escorrida no chão sempre que se velava alguém na sala de visitas. Prosseguiu assim por uns minutos desenterrando mortos esquecidos da família, em seu descanso no cemitério velho de Villa Ângelus.
O açoite do vento faz balançar arreios ressecados, utensílios soltos rangem na cisterna.
- Posso servir o jantar, doutor Sandro?
Sem que ouvisse resposta, a bondosa Laura ia dispondo toda a baixela de prata sobre a mesa. O tilintar dos talheres sendo arrumados em volta do prato era discreto o suficiente para mantê-lo abstraído. Laura dava ordens às duas copeiras com a desenvoltura de quem há muito tem as rédeas da casa. Em seguida trouxe a sopa, fumegando mais que o costume para contrabalançar os 10 graus que faziam lá fora. Sandro abriu a terrina do prato principal e viu sua própria cabeça cozida, guarnecida por vagens, batatas e cenouras. Ao roçar do garfo a face desfiava-se, deixando à mostra a ossatura, como galinha na canja. Era o que merecia depois de tanta devassidão. Perdera a conta de quantas empregadinhas, filhas de colonos, se debruçaram à força sobre o móvel para satisfazer-lhe.
- Doutor Sandro...
- Por favor, Laura, retorne essa parafernália toda pra cozinha. Me basta um bife bem passado ou algo parecido.
- Com vinho tinto?
- Não, água.
Enquanto aguardava consultou o caderno de anotações, onde se liam cotações da arroba do boi e outros dados sobre commodities, além de uns poucos telefones e endereços.
Um ímpeto de chorar o limbo de dias estéreis, o inconformismo das perdas, do que conspirou para o silêncio cortante da casa. Sua vida de vidro, o vidro que fere e aleja e o vidro dos bulbos de lâmpada, memória cálida e incandescente.
O cafezal se alongando, as ruas simétricas como simétricas se enfileiravam as cadeiras de veludo ocre que via a partir da cabeceira. Quantos lugares vazios.
- Trago agora as compotas, Doutor Sandro?
- Não, Laura. Sirva-me um licor na sala de música.
Refletidos no cálice, seu pai em torno dos 40, empunhando armas e chicotes, o colete escuro e a camisa de linho impecavelmente branca. Sua mãe de avental e unhas encardidas de farinha, o batom de um carmim vivo e o cabelo sempre preso. Quase que visíveis se apresentaram também os sumos das laranjas chupadas no pé, sanfonas e quadrilhas, broncas e toques de afago.
Os filhos ainda crianças, depois adolescentes, casados, os netos.
- Charutos, Doutor Sandro?
Olhava o envelope pardo ali, intacto. Sua vida passando naquele copo que era uma bola de cristal às avessas. Ao invés de adivinhar o futuro, trazia o que havia de doce e de amargo no passado. Assim ficou até ver o chão abrir-se em ralo, levando tudo, inclusive ele, em seu abismo.