DESASSOSSEGO


Aos inquietos do limbo, fartos de se debaterem


A sola gasta, sim, de vagar a esmo a um você sem rosto pra me decifrar. Bote reparo e verá que agora são dejetos de anteontem a remoer na inconclusão, são só farelos deixados sem que se tenha lambido os beiços com o prato principal. Sobram as recordações dos cômodos fortuitamente habitados, de segredos trocados a medo, trechos de diários que acabaram inacabados e outros resquícios do gênero, consumidos, digeridos e vertidos trilha afora. Mas que percurso é esse a que chamo trilha, se não houve intenção de ida nem plano de chegada? Os pés doloridos e as mãos amarradas, me pego assistindo na primeira fila a um plano-seqüência de portas trancadas que abria na unha, cismado na busca. Centenas delas, em perspectivas várias, a se estenderem moles. Irresponsavelmente permitimos que nos lançassem à deriva, e é bem provável que por isso não tenhamos conseguido chegar com sanidade a parte alguma.

É sempre indiferente a geografia na ausência da própria casa, no que ela tem de esteio e vínculo. Tanto faz aqui ou o Nepal, tamanho o vácuo desse estado que não é. O drinque que peço é mais pra lembrar do que pra esquecer, embora haja menos motivos para resgatar o que valeu do que para execrar o que fez sofrer. O garçom ainda não trouxe meu pedido, talvez nunca traga e de minha parte estará ótimo assim. Melhor chamar um táxi e me enfiar na cama a seco, o quanto antes. Em qualquer lugar e em qualquer cama que se disponha a abrigar essa carcaça.

O motorista gostaria de ir mais rápido, reclama dos radares. Na janela do carro o luminoso inflama em cores: Center Norte. Sem ter norte, penso. O jogo de palavras é de gosto discutível, mas veio a propósito. Sem geléias da mamãe, assim é feita a vida nua e crua. Sem provérbios de consolo, do tipo “Nessas horas é preciso olhar pra trás” – nem tente, acabará atropelado. Sem ombro amigo, sem prêmios de consolação, sem nada que se assemelhe à ideia de serafins de infinita bondade a zelar por nossos passos. Anjos, a quem interessar possa, só os das liqüidações de fim de ano, a badalar seus sinos em 3x sem juros. Nem um pouco etéreos, obras da imperfeição humana feitas de papel machê, isopor ou compensado, conforme a verba disponível para ornamentação da vitrine. Ofertas arrasadoras, o gerente ficou louco, é só até sábado e o frete é grátis. Bye bye, cândidas ilusões. De vocês, anjos fajutos, o inferno está até aqui.

É dia de novo. Braços espichados forçando um alongamento, como se no esticar das vértebras fosse possível distender a alma junto com os músculos e nervos nesse leito quente. Semicerradas as pálpebras, que alguém me mostre pra onde o quando afinal será, enquanto a TV ligada anuncia o filme da Sessão da Tarde.

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